“Parece que me amavam só quando eu era diácono da Basílica.” A frase do sociólogo e antropólogo Manuel Valente resume a virada radical em sua trajetória espiritual. Natural de Cametá, no interior do Pará, ele atuou por anos como diácono na Basílica Santuário de Nazaré, em Belém, até decidir seguir um caminho mais íntimo e antigo: a Umbanda. Hoje, é pai de santo e zelador do terreiro Casarão dos Encantados, onde atua ao lado da esposa, filhos e neto.
Manuel ganhou projeção nacional em 2020 ao protagonizar uma reportagem da BBC Brasil sobre o Sínodo da Amazônia e a discussão sobre ordenar homens casados. Na época, ainda era diácono e conciliava discretamente sua ligação com religiões de matriz africana. A pandemia, no entanto, mudou tudo. Após perder o pai e enfrentar um grave quadro de Covid-19 em 2021 — quando chegou a ter uma nota de falecimento publicada por engano —, ele conta ter vivido experiências espirituais profundas que o levaram a reavaliar sua fé.
“Durante a internação, encontrei Iemanjá, Jesus, Xangô, Maria Madalena, Oiá e Ogum. Os filhos de Oiá fazem do risco de morrer, força pra viver”, relembra. Pouco depois, deixou definitivamente a Igreja Católica. A decisão veio acompanhada de preconceito e distanciamento de antigos fiéis. “Várias filas se formavam na Basílica para pedir bênção. Eu rezava a Deus e a Nossa Senhora, mas também a Oiá, Xangô, Exu, Dona Mariana. Galera não sabia. Depois que soube, pronto. Era fácil ser amigo do diácono, mas de um macumbeiro é ralado, né?”, diz.
Hoje, Manuel coordena rituais e celebrações no Casarão dos Encantados, espaço que criou em sua cidade natal. Além da vida religiosa, ele atua como professor de Ciências Humanas e dá aulas a pessoas privadas de liberdade. Sua história é um exemplo de resistência e um convite à reflexão sobre tolerância e liberdade religiosa. “Hoje somos uma família de macumbeiros muito feliz”, afirma.
Racismo religioso ainda é realidade no Brasil
A trajetória de Manuel expõe uma ferida persistente no país: o racismo religioso. Religiões de matriz africana, como a Umbanda e o Candomblé, continuam sendo alvo frequente de ataques, discriminação e estigmatização. Essas violências vão de agressões verbais e piadas preconceituosas até a destruição de terreiros e locais sagrados.
A legislação brasileira reconhece o racismo religioso como crime, equiparando-o ao racismo previsto na Constituição e na Lei nº 7.716/89. As penas variam de dois a cinco anos de reclusão, além de multa. Denúncias podem ser feitas em delegacias ou por meio do Disque 100, do Ministério dos Direitos Humanos.
Entre bênçãos concedidas na Basílica e cânticos entoados no terreiro, Manuel Valente construiu um caminho que desafia preconceitos e mostra que fé não cabe em rótulos. Sua história lembra que espiritualidade também é resistência — e que escolher ser fiel a si mesmo pode ser o mais poderoso dos atos religiosos.