Autor de livro sobre julgamento da morte de Ayrton Senna expõe causas e contradições: ‘Processaram as pessoas erradas’ Autor de livro sobre julgamento da morte de Ayrton Senna expõe causas e contradições: ‘Processaram as pessoas erradas’

há 3 dias 7

Às vésperas do GP de São Paulo, o jornalista italiano Nicola Santoro lança no Brasil, a versão em português do livro “O Caso Senna”, que revisita o julgamento sobre o acidente que tirou a vida de Ayrton Senna durante o GP de San Marino, em Ímola, em 1994.

Às vésperas do Grande Prêmio de São Paulo, a morte de Ayrton Senna voltou ao centro das atenções com o lançamento da versão em português do livro “O Caso Senna – Toda a Verdade sobre o Julgamento”. Em entrevista ao UOL divulgada nesta quarta-feira (6), o jornalista italiano Nicola Santoro, autor da obra, revisita o complexo processo judicial em torno do acidente que tirou a vida do tricampeão mundial.

Senna faleceu durante o GP de San Marino, em Ímola, em 1994. O imbróglio jurídico se desenrolou na Itália anos depois, entre 1996 e 1999, e buscou esclarecer os mistérios por trás da tragédia na Curva Tamburello, no Autódromo Enzo e Dino Ferrari. Santoro, que acompanhou de perto as audiências, traz à tona, as descobertas centrais do julgamento, bem como as polêmicas que cercaram a morte do piloto brasileiro.

As discussões se concentraram na segurança da pista e no design do carro, o Williams FW16. O promotor Maurizio Passarini sustentou a tese de que uma falha na coluna de direção modificada teria sido o principal fator que levou ao acidente. “A edição em português do livro é dedicada a ele (Passarini), porque ele fez um trabalho incrível na fase de investigação, colocando todos os documentos e todos os especialistas, consultorias, além de 4 mil páginas do processo no site dele. Foi um grande trabalho por mais de 4 anos, basicamente, desde que a investigação começou”, afirmou Santoro ao UOL.

O projetista Adrian Newey foi um dos primeiros apontados como responsável pela falha. A coluna de direção, originalmente uma peça única, havia sido alterada pouco antes da corrida de Ímola. Após reclamações de Senna sobre a posição desconfortável ao volante, a equipe cortou a peça e inseriu um tubo mais estreito, buscando mais espaço e ergonomia.

Múltiplos fatores

A acusação alegou que a modificação foi mal projetada e executada, o que teria causado a quebra da coluna no momento da batida. Após o impacto, o componente foi encontrado a 225 milímetros do volante, indicando ruptura. O professor Lorenzini, consultor da acusação, chegou a afirmar que uma solda malfeita foi “certamente” a causa do acidente.

Durante uma conversa em Monza, Newey declarou que Gavin Fisher, então chefe de design da escuderia, teria sido o responsável pela alteração. Especialistas apontaram que uma foto da coluna caída ao lado do carro já sugeria esse cenário desde o início. Santoro, no entanto, defende que o acidente foi resultado de “múltiplos fatores”.

“A foto de [Angelo] Orsi, da coluna de direção no chão, fora do carro, põe quase todos nessa direção desde os primeiros dias. E o trabalho [de Passarini] clarificou, é correto, a coluna de direção foi a principal causa, mas eu não descartaria algo sincronizado, outras circunstâncias. Minha visão pessoal, que não tem nada a ver com o julgamento em si, é que há semelhanças com acidentes de avião. Há incríveis acontecimentos múltiplos, eventos sincronizados, que não tinham sido contados por ninguém desde aquele momento”, explicou.

Investigação embaçada

A falta de clareza sobre “quem fez o quê e quando” dificultou o avanço da investigação. O julgamento também revelou confusões na divisão de funções dentro da equipe Williams, o que impediu a identificação precisa dos responsáveis técnicos.

“Honestamente, há algo que ninguém aborda com a seriedade devida: as funções especializadas na Fórmula 1 impedem que o chefe, o gerente ou o diretor controlem de fato as ações dos seus subordinados. Isso acontece porque, muitas vezes, o subordinado sabe mais que o chefe. É um ambiente extremamente técnico, com muitos especialistas, e nem mesmo o diretor de gestão tinha conhecimento de tudo”, pontuou Nicola.

Ayrton Senna conversa com Patrick Head, diretor de engenharia da Williams, durante os treinos para o GP do Pacífico, em Okayama, no Japão, em abril de 1994. (Foto: Paul-Henri Cahier/Getty)

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O autor acredita que o processo acabou mirando as pessoas erradas: “Então, poderia ter sido algo ocorrendo ao mesmo tempo, em relação à roda de direção e à suspensão, para que ambos pudessem criar essa instabilidade que levou Senna direto para a parede. Aparentemente, esses técnicos foram Fischer e Young, que operaram naquela coluna modificada. O que eu entendo é que, talvez, o processo tenha sido movido contra a pessoa errada no que diz respeito aos aspectos técnicos”.

Gravação suspeita

Outro ponto controverso foi o desaparecimento da gravação onboard — a “caixa-preta” do carro de Senna. Inicialmente, a FOCA (Formula One Constructors Association) negou a existência do vídeo, que depois veio à tona sem registrar o momento do impacto, já que o corte ocorre instantes antes do acidente.

A ausência do trecho completo levantou suspeitas sobre uma possível omissão. “Em relação ao vídeo, pessoalmente, eu acredito que é possível que o controle da câmera do carro de Senna para o de [Ukyo] Katayama foi uma escolha jornalística, mas não fiquei convencido com as declarações dos testemunhos. Então, acredito que a filmagem existiu, mesmo que não tenha sido revelada no tribunal”.

Segundo o autor, as testemunhas ligadas à Williams demonstraram “memória seletiva” durante o julgamento. Entre elas, o então companheiro de equipe Damon Hill afirmou não se lembrar de reclamações de Senna sobre o carro — apesar dos diversos registros públicos do brasileiro sobre o tema, especialmente durante entrevistas à imprensa.

“É de conhecimento geral, especialmente no ambiente anglo-saxão, que o automobilismo é perigoso – está escrito até na entrada de Silverstone. A verdade, contudo, é que as testemunhas, principalmente os pilotos Damon Hill e David Coulthard, tinham uma memória muito fraca. Sinceramente, nenhum dos jornalistas presentes acreditou no que eles disseram, pois ainda estavam na ativa na época e acabaram transferindo toda a responsabilidade para a equipe Williams”, pontuou Santoro. Damon Hill foi consagrado campeão mundial da Fórmula 1 após o acidente de Senna.

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Embora a acusação tenha se concentrado na Williams, a segurança da pista de Ímola também entrou em debate. A defesa da equipe argumentou que os solavancos na Curva Tamburello poderiam ter causado a perda de controle do carro. Um mês antes do acidente, Senna já havia reclamado do asfalto irregular no local, descrevendo-o como “cheio de degraus”. Ele e o piloto Pierluigi Martini chegaram a alertar o diretor da pista, Giorgio Poggi, o que resultou em obras de nivelamento.

Após a tragédia, o circuito passou por uma grande reformulação: a curva foi extinta e substituída pela Variante Tamburello, significativamente mais lenta.

@cundof1 Variante tamburello – Momento vivido en live recorriendo el hermoso circuito de imola – ig: facuescobarc #tamburello94 #circuitoimolaf1 #imola #italy🇮🇹 #F12025 #gpsanmarino1994 #cundof1 #ayrtonsenna #Senna #ferrari ♬ sonido original – cundof1

Além disso, a morte de Ayrton Senna foi um divisor de águas na Fórmula 1, impulsionando transformações radicais em segurança. As mudanças incluíram pistas mais seguras, cockpits reforçados, cabos de aço nas rodas e o uso obrigatório de dispositivos como o HANS (em 2003) e o Halo (em 2018).

“Foi a última contribuição de um piloto tão grande para mudar totalmente o esporte, porque, após o acidente, a Fórmula 1 nunca mais foi a mesma. Muitas medidas de segurança fazem com quem seja considerado quase um esporte seguro hoje em dia. Então, foi a maior contribuição para a Fórmula 1 ser o que é hoje”, concluiu Santoro.

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